Um ano de corrida às armas sem vencedores nem vencidos

Desde o início da invasão russa da Ucrânia, a 24 de fevereiro de 2022, dezenas de países enviaram armas e equipamentos militares às forças ucranianas. Pela primeira vez, a União Europeia forneceu armamento letal a um país terceiro e alguns países da NATO e aliados, como a Alemanha, a Noruega e a Suécia, reverteram políticas de décadas que proibiam o envio de armamento ofensivo a outros países.

A ajuda não caiu subitamente no colo dos ucranianos. Uma fração, letal e não letal, já havia sido prometida e fornecida nos meses anteriores, sobretudo pelos Estados Unidos da América, pela União Europeia e pelo Reino Unido, os quais tinham garantido a Kiev que não ficaria sozinha em caso de agressão russa. Desde pelo menos 2014 decorriam igualmente programas de treino das forças armadas ucranianas, com apoio institucional em diversos países, que formaram 27.000 soldados em ações de guerrilha, a somar a 100.000 antigos combatentes.

Circunstâncias que permitiram a autodefesa da Ucrânia nos primeiros meses, com ajuda especial de armamento oriundo de alguns países do leste europeu, liderados pela Polónia e pela Chéquia, que aproveitaram para se desfazer de armamento soviético ainda operacional, antes do armamento mais moderno começar a chegar ao terreno.

A verdade é que, perante o poderoso vizinho, toda a ajuda que a Ucrânia receba é pouca. Ao fim de meses de ajuda, a disparidade de meios humanos e de equipamentos entre a Federação Russa e a Ucrânia mantém-se imensa.

Mesmo sem ser contabilizado o arsenal nuclear russo, o maior do mundo, a Rússia ocupava em 2022, como nos anos anteriores e ainda em 2023, a segunda posição no índex GFP, GlobalFirePower, entre 145 países e logo atrás dos EUA. Já a Ucrânia estava em 22º tendo subido a 15º em 2023, muito devido ao auxílio recebido.

Neste conflito, as vantagens estão quase todas do lado russo. A Ucrânia só é beneficiada no fator terreno, por estar a defender o próprio território.

Poder por si só não garante qualquer vitória à Rússia, sobretudo quando os EUA intervêm. Exemplo disso foi o que sucedeu à União Soviética no Afeganistão na década de 80 do século XX, quando os Estados Unidos forneceram armamento aos mujahedin até forçar o Kremlin a optar pela retirada.

Se, em clima de Guerra Fria, as operações de apoio aos guerrilheiros afegãos foram secretas, os pedidos de ajuda militar ao Ocidente, ao longo do ano de 2022, por parte do Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, foram não só públicos como progressivamente mais exigentes devido às necessidades no terreno. A resposta ocidental foi igualmente pública e em crescendo.

Zelensky, não se eximiu de apelar por mais e mais auxílio, jogando a cartada da defesa da liberdade ocidental se estar a fazer exatamente na Ucrânia. A obtenção dos sistemas de lançamento de mísseis M142 HIMARS no verão "mudou o jogo" a seu favor e deu novo alento aos pedidos.

No início de 2023, Zelensky viu finalmente satisfeita a sua exigência por blindados mais modernos, como os alemães Leopard 2, os britânicos Challenger ou os norte-americanos M1 Abrams. Os dois primeiros tipos têm entrega prevista para finais de março e início de abril próximos. A dos M1 Abrams é mais incerta.

Os primeiros carros armados Leopard 2 enviados pelo Canadá para a Ucrânia, chegaram à Polónia a cinco de fevereiro 2023 Foto - Reuters

Até agora, Zelensky só não obteve dos Estados Unidos os cobiçados caças F-16. A Polónia admitiu enviá-los mas a questão está longe de estar decidida. Também Israel, cuja aparente neutralidade tem incomodado Kiev, admitiu no início do ano de 2023 providenciar à Ucrânia o seu sistema de proteção Iron Dome, de forma a proteger alvos civis.

Todos estes pedidos necessitaram uma organização logística e financeira, nalguns casos sem precedentes.

O Ocidente já preparava formas de auxiliar militarmente a Ucrânia mesmo antes da invasão de 24 de fevereiro de 2020. Depois, organizou três iniciativas principais para fazer chegar o apoio pedido por Kiev, as quais têm evoluído consoante as necessidades.

Atualmente existem o Centro Internacional de Coordenação do Doadores (IDCC) que recebe os pedidos, coordena a resposta e garante a entrega. Os EUA estabeleceram o Grupo de Contacto de Defesa Ucraniano, que analisa mensalmente as necessidades de Kiev e envolve mais de 50 países. As aquisições e transporte da ajuda a partir de terceiros e da indústria, assim como a facilitação do treino operacional, são coordenados pelo Fundo Internacional para a Ucrânia (IFU). Até agora, a IFU recebeu promessas de 677 milhões de euros.

A NATO tem providenciado apoio aos aliados, através da coordenação de esforços e facilitando a entrega de ajuda humanitária e não letal à Ucrânia. Os membros da Aliança recusaram até agora impor uma zona de exclusão aérea sobre a Ucrânia, como pedia Kiev, uma vez que isso implicaria colocar as forças NATO em conflito direto com a Rússia.

De todos os mecanismos, o mais significativo é o programa Estabelecimento da Paz Europeia (EPF) lançado em março de 2021, quase um ano antes da invasão.

Desenhado ao início para fortalecer a capacidade das forças armadas ucranianas, foi utilizado 11 meses depois para "financiar o fornecimento de equipamento letal ao exército ucraniano, assim como combustível urgentemente necessário, equipamento de proteção e suprimentos médicos de emergência", com a Polónia a servir de placa giratória para a assistência. De fora ficam pedidos por aviões e helicópteros, a financiar via mecanismos bilaterais.

Esta foi a primeira vez que a União Europeia decidiu providenciar equipamento letal a um país terceiro. "Caiu mais um tabu", sublinhou o Alto Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, o espanhol Josep Borrell, ao anunciar a decisão a 22 de fevereiro de 2022, em vésperas da invasão.

Sete tranches de apoio militar foram acrescidas até agora, elevando o total da assistência financeira providenciada pelo EPF, em auxílio letal e não-letal, a 3.6 mil milhões de euros. O teto financeiro do EPF é atualmente de sete mil milhões de euros até 2027, dos quais 60 por cento destinados a assistência militar.

O pacote mais recente para o EPF, de 500 milhões de euros, foi anunciado a 2 de fevereiro de 2023, a par de novas medidas no valor de 45 milhões de euros em apoio à Missão de Assistência Militar da União Europeia à Ucrânia, iniciativa lançada a 15 de novembro de 2022 ao abrigo da EPF e destinada ao treino de 15.000 tropas ucranianas.
David e Golias
Ao longo dos últimos 12 meses, a entrega do armamento por parte dos países ocidentais tem permitido à Ucrânia responder no terreno. Mas a balança do poder continua naturalmente a favorecer a Rússia, como comprova um quadro comparativo do respetivo potencial militar, já de 2023.


É de frisar que a Federação Russa empenhou até agora na Ucrânia uma fração das suas forças e que pode pedir auxílio a um dos seus maiores aliados, Alexander Lukachenko, o Presidente da Bielorrússia que lhe deve a permanência no cargo após os protestos de 2020, devido ao envio de tropas russas para as ruas das cidades bielorrussas. O Kremlin recorreu já ao Irão, seu aliado no conflito sírio, para se abastecer de drones Shahed, fornecidos pelos Guardas da Revolução, aparelhos cuja produção própria descurou.

A Coreia do Norte garantiu que não tem fornecido armamento à Federação Russa, apesar das suspeitas, e não há registo de auxílio por parte de outro amigo de Putin, Reccep Tayyip Erdogan, Presidente da Turquia, nem de países árabes, que se têm mantido à parte e a quem a guerra está a fornecer novos mercados por ausência russa.

Putin já demonstrou vontade de obter apoio militar da China mas até agora Pequim tem-se mantido afastada do conflito. A autenticidade de vídeos que circulam nas redes sociais a denunciar o envio de material militar chinês é questionável. O Presidente chinês, Xi Jin Ping, preferiu em dezembro de 2022 falar em pragmatismo ao seu homólogo russo.

Em fevereiro de 2023, perante rumores de que a China estará a fornecer à Rússia componentes sancionados pelo Ocidente que podem ser utilizados no fabrico de armas, o secretário de Estado dos EUA deixou recados a Pequim, admitindo "graves problemas para nós", se a China decidir ajudar a Rússia com armamento, um alerta ecoado pelo Alto Representante da UE, Josep Borrell, registado pela Antena 1.

Os avisos denotam um problema que já está a desenhar-se. Um ano depois da "operação especial" de Moscovo, a drenagem de recursos bélicos esvaziou arsenais de um lado e de outro a uma velocidade estonteante.

A reposição do armamento não se adivinha fácil. A maioria dos analistas ocidentais acredita que as sanções têm estado a ter impacto na produção da indústria militar russa, apesar do que tentava fazer crer o Presidente russo, Vladimir Putin, há apenas um mês, quando garantiu que o seu país estava a produzir tantos mísseis antiaéreos como todos os países do mundo juntos, em resposta à alegada escassez de munições no exército russo. "No que diz respeito aos mísseis de defesa antiaéreos de diferentes classes, a produção russa é comparável à produção mundial", assegurou Putin a 24 de janeiro de 2023, durante uma reunião no Kremlin com Viacheslav Gladkov, governador da região de Belgorod, que faz fronteira com a Ucrânia.

O Ocidente reconhece por seu lado que a guerra se está a transformar numa corrida aos armamentos, numa altura em que a economia mundial se estava a refazer dos problemas provocados pela pandemia de Covid-19.

No dia 8 de fevereiro, o Reino Unido anunciou um “aceleramento” na entrega do equipamento para garantir apoio contra uma eventual ofensiva de primavera. Londres foi um dos nove signatários do Juramento da Talin, de 19 de janeiro de 2023, no qual reconheceram a necessidade de multiplicação de esforços para apoiar a Ucrânia, não apenas a defender o seu território como a expulsar as forças russas das áreas sob seu controlo.

Prometeram “procurar coletivamente a entrega de uma série de doações sem precedentes, incluindo carros blindados de combate, artilharia pesada, defesa aérea, munições e veículos ligeiros de infantaria para a defesa da Ucrânia”.

Intenções que poderão bater de frente com a realidade.

Na semana que antecedeu a conclusão do primeiro ano de guerra, Josep Borrell multiplicou-se em avisos quanto à falta de recursos bélicos europeus. Preocupação partilhada pela NATO. O apelo é por mais munições.

"A questão mais urgente hoje para o exército ucraniano é ter um fluxo contínuo de munições, sobretudo de calibre 155 milímetros" afirmou o diplomata, a 20 de fevereiro.

"A Rússia dispara cerca de 50 mil tiros de artilharia por dia, e a Ucrânia necessita de estar ao mesmo nível de capacidade. Têm canhões, mas faltam-lhes munições. Por isso, faremos tudo o que pudermos", prometeu.

"Esta é a questão mais urgente. Se falharmos nisto, o resultado da guerra está em risco", sublinhou.

Os problemas que se levantam são a qualidade da resposta da indústria de armamento e o impacto da alocação de recursos em prejuízo de outras áreas económicas.

Outro dilema que pode preocupar o Ocidente é o destino de todas as armas fornecidas caso a Rússia vença a guerra. O mais provável serão os arsenais, as oficinas e os laboratórios de armamento de Moscovo, numa transferência de tecnologia e de recursos significativa. 

Soldados ucranianos preparam em Donetsk a 16 de fevereiro de 2023 mais um disparo do M119 Howitzer que lhes foi atribuido Foto - ReutersArmas do Ocidente, armas do Oriente

É pouco provável que o atual cenário e as suas necessidades se encaixassem nas previsões do Kremlin há um ano.

A pressão armada em larga escala sobre Kiev iniciara-se 11 meses antes, em março de 2021. Ao longo dos meses seguintes, a par de uma ofensiva diplomática para convencer Kiev a abandonar os seus planos de adesão à União Europeia (UE) e à Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO/OTAN), Moscovo estacionou gradualmente tropas nas fronteiras da Ucrânia com a Rússia e depois daquela com a Bielorrússia, até um total estimado entre 169.000 a 190.000 homens, com base em imagens satélite.

Eram apoiados por 1.200 blindados, 1.600 peças de artilharia, 330 aeronaves, 240 helicópteros, 75 navios e seis submarinos.


Informação oriunda de um relatório dos serviços secretos norte-americanos, citada por uma fonte da Casa Branca ao Washington Post, revelava que, em finais de dezembro de 2021, a Rússia se preparava para reforçar ainda mais as suas forças, em antecipação da entrada na Ucrânia. "Os planos envolvem movimentos alargados de 100 batalhões táticos, com uma força estimada em 175.000 homens, além de blindados, artilharia e equipamento", referia a fonte, sob anonimato.

Dentro das fronteiras ucranianas, nas autoproclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e de Luhansk, acumulavam-se ainda as forças rebeldes pró-russas, num total de cerca de 24.000 tropas, que lutavam contra o exército ucraniano desde 2014 e que intensificaram os combates nos dias anteriores à invasão.
A invasão russa teve início a 24 de fevereiro de 2022. Estavam em Kiev os enviados da RTP, Cândida Pinto e David Araújo.

Em fevereiro de 2022, os arsenais de ambos os contendores assemelhavam-se quanto ao tipo de armas, mais sofisticadas e modernizadas as da Rússia, graças a tecnologia adquirida aos Estados Unidos, à Europa e na Ásia. Circunstância comprovada pelas peças e equipamentos, destruídos em combate ou abandonados pelos russos e confiscados pela Ucrânia nos primeiros meses do conflito.Um relatório do britânico Royal United Services Institute referia em 2022 terem sido recolhidos em apenas cinco meses mais de 450 vestígios de influência externa nas armas russas.

“De muitas formas, no início da guerra ambos os lados combatiam com as mesmas armas”, muito por os respetivos arsenais serem compostos sobretudo por armamento soviético dos anos 80 do século XX, afirmava já em abril de 2022, ao Washington Post, Jeremy Shapiro, diretor de pesquisa no Conselho Europeu de Relações Externas.

Um soldado ucraniano observa um veículo blindado BMP-2 de infantaria russo capturado em Bakhmut, Donetsk, a 17 de fevereiro de 2023 Foto - Reuters

À semelhança da Rússia mas em muito menor escala, também a Ucrânia desenvolvera armas próprias, sobretudo nos primeiros anos de crispação com Moscovo de 2014 em diante, valendo-se da sua indústria de armamento, a qual tinha raízes soviéticas profundas.

Analistas britânicos estimam que 30 por cento da indústria de armamento da URSS se baseava na Ucrânia. O país era proficiente na construção de navios de guerra e na produção de mísseis, com Kharkiv a ser considerada a Detroit da indústria militar no leste da Europa.

Mesmo tendo cedido à Rússia as suas 3.000 armas nucleares através com o Memorando de Budapeste, em 1994, a Ucrânia mantivera-se como a mais potente entre as ex-Repúblicas Soviéticas, a seguir à Rússia.

Até 2022, o país continuava a ser um dos maiores fabricantes de aviões, de tanques e de artilharia do mundo, com o Ukroboronpom, a associação de empresas ucranianas da área de indústria de Defesa, a agregar diversos produtores estatais que empregavam quase 70 mil operários especializados.

De acordo com o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz, de Estocolmo, entre 2017 e 2021 a Ucrânia era 14ª na lista dos maiores exportadores de armamento. Os seus clientes principais eram a China e a Tailândia. A Rússia mantinha-se em terceiro lugar apesar do afastamento entre Kiev e Moscovo após a revolução da Praça Maidan em 2014 e da guerra dos separatistas pró-russos, circunstância explicada pelos modelos produzidos, baseados nos soviéticos.


Um míssil Neptuno ucraniano terá sido utilizado para afundar o Moskva, o navio líder e orgulho da armada russa do Mar Negro, construído anos antes em estaleiros de Sebastopol. A operação de meados de abril de 2022, foi tida como uma vitória ucraniana e um símbolo da absoluta rejeição dos interesses de Moscovo por parte de Kiev, perante os efeitos do assalto territorial sobre as populações.

Um dos primeiros alvos dos russos após 24 de fevereiro de 2022 foi por isso a fábrica nos arredores de Kiev responsável por produzir componentes do míssil Neptuno, assim como morteiros teleguiados de precisão Alder.

A Ucrânia seria sempre incapaz de fazer frente à Federação Russa por muito tempo. Os países ocidentais foram em seu socorro, em nome da defesa da liberdade e da democracia que Kiev ambicionava.

A lista de fornecedores bilaterais de armas à Ucrânia desde fevereiro de 2022 é longa e liderada de longe pelos Estados Unidos da América, que já prometeram 30 mil milhões de dólares (mais de 27 mil milhões de euros) em material e ajudas financeiras desde o início da Administração Biden, a quase totalidade dos quais, 29.3 mil milhões de dólares (27.3 mil milhões de euros), nos últimos 12 meses.
 

A quantidade de material fornecido à Ucrânia pelo Ocidente desde 2022, desde munições a óculos de visão noturna e capacetes, desde armas pessoais até sistemas de defesa antiaéreos, desde peças de artilharia até carros de combate, desde combustível a peças de manutenção, é de tal forma vasta que se torna praticamente impossível condensá-la.

Numa visita surpresa a Kiev, dia 20 de fevereiro, o Presidente dos EUA, Joe Biden, contabilizava de forma genérica "quase 700 carros de combate e milhares de veículos blindados" fornecidos pelos aliados nos 12 meses anteriores.

Logo em março, abril e maio de 2022, e sem contar com as ajudas prometidas em dezembro de 2021 sobretudo pelos EUA, Reino Unido e União Europeia, as primeiras remessas de material militar centraram-se em equipamentos e munições dos tempos do Pacto de Varsóvia, oriundas de diversos países do leste europeu e semelhantes às existentes na Ucrânia, que dispunha de capacidade operacional e de manutenção, incluindo peças sobressalentes.

Polónia, Chéquia e Países Bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia), por exemplo, aproveitaram para limparem os seus arsenais trocando equipamentos soviéticos por modelos ocidentais mais recentes.

Foi uma situação em que "todos ganharam", explicou Mark Cancian, conselheiro-sénior do Centro de Estudos Estratégicos Internacionais. As exceções foram a Bulgária, que preferiu oferecer serviços de reparação, a Croácia e a Hungria, vizinha da Ucrânia.

Entre os países membros da NATO são de frisar a formação de diversas parcerias, tanto para providenciar treino a tropas ucranianas como para renovar armamento antigo para a Ucrânia, como o caso da Chéquia, que assinou em novembro uma parceria com os EUA e os Países Baixos para modernizar 90 blindados T-72 checos, ou a Iniciativa Leo 1 lançada em fevereiro de 2023, que alia a Dinamarca, a Alemanha e os Países Baixos, na modernização de 100 blindados alemães Leopard 1 a entregar à Ucrânia juntamente com peças, apoio de manutenção e de treino.

Dezenas de carros de combate Leopard 1 e outros veículos blindados num hangar da Bélgica, a 31 de janeiro 2023 Foto - Reuters

Ao lado da Noruega e da Alemanha, a Dinamarca decidiu ainda investir numa fábrica de canhões Howitzer na Eslováquia.

Na União Europeia, países como a Irlanda, a Áustria ou o Chipre comprometeram-se entretanto em apoiar a Ucrânia somente com auxílio em equipamento não letal, em nome da neutralidade. A Itália, onde a contestação ao apoio é significativa, tem preferido contribuir apenas com armas "defensivas", sem revelar as ajudas militares concedidas, ao abrigo do "segredo de Estado". Espanha também não revela com especificidade o montante do auxílio militar, concentrando-se na ajuda humanitária e treino de soldados ucranianos.

Do outro lado do mundo, Japão, Austrália e Nova Zelândia decidiram incluir-se nos apoiantes de Kiev com equipamento diverso.

Nem toda a ajuda fornecida é letal.
É também enviado vestuário de proteção, óculos de visão noturna, equipamentos médicos, hospitais de campanha, rações de combate, geradores, sistemas radar ou até artigos de higiene, incluídos no auxílio enviado pelo Japão.

A Bélgica, por exemplo, além de diverso armamento, providenciou dois laboratórios portáteis de análise Química, Biológica, Radiológica e Nuclear e diversos veículos autónomos submarinos de deteção de minas e vigilância subaquática.

Já o apoio da Dinamarca, igualmente diverso, tem sido precioso em questões de segurança cibernética.
 
Há ainda quem, como a Finlândia, que não tem forças armadas, ofereça apoio logístico no transporte do auxílio e compre material para doar, caso dos carros de combate Leopard 2 anunciados na véspera do primeiro aniver´sario do conflito.

Entre outros apoios, a Grécia disponibilizou aos Estados Unidos o porto de Alexandropólis para agilizar a transferência dos equipamentos para a Ucrânia e a Roménia tem funcionado como país de trânsito do auxílio, oferecendo-se para receber feridos e contribuindo financeiramente para o esforço internacional de equipar as tropas ucranianas.

A Turquia, parceira na NATO, destaca-se com a contribuição dos seus drones Bayraktar, mesmo que Ancara descreva o negócio como “vendas privadas” de forma a evitar problemas com Moscovo, com quem tem laços de proximidade. A verdade é que muitos destes veículos autónomos de reconhecimento foram fornecidos a Kiev em 2019. Novas entregas de Bayraktar e treino de pessoal no seu manejo foram faladas no início da guerra. Em agosto, Ancara ainda terá providenciado 50 veículos resistentes a minas com indicação de mais remessas em breve.

Além dos EUA, com 27.3 MME e do Reino Unido, com 42.2 MME, o maior financiador militar da Ucrânia é a União Europeia enquanto instituição, com 3.6 MME.


Alguns destes montantes são aproximados e em permanente actualização, incluindo não só o valor das armas enviadas como a ajuda financeira providenciada a mecanismos como o IFU e o IDCC. Além disso não incluem os custos do treino operacional dado aos solados ucranianos, apoiado por países terceiros, como a Austrália.

Na Europa, a Polónia foi quem enviou maior quantidade de armamento, incluindo centenas de carros de combate. As remessas dos ex-países do Pacto de Varsóvia incluem ainda dezenas de milhares de munições e de armas pessoais, incluindo espingardas tipo Kalashnikov, carros de combate M-84 e M-55 (Eslovénia) e T-72 remodelados (Polónia, Chéquia, Macedónia do Norte).


Apenas em termos de armamento, ao longo de 2022 e incluindo o início de 2023, a maioria dos países europeus, mais o Canadá e a Austrália, foram enviando espingardas, metralhadoras, munições de diversos tipos, canhões Howitzer, mísseis Javelin, Stinger, Hellfire, Starstreak e Mistral, um “número significativo” de mísseis de precisão guiados M31A1, sistemas HAWK, morteiros AMRAAM a serem usados pelo sistema NASAMS norte-americano de mísseis terra-ar e capazes de abater mísseis cruzeiro, os novos sistemas navais Harpoon, helicópteros de combate, munições de alta precisão, sistemas de lançamento de morteiros M270 de longo alcance e respetivas munições, centenas de drones e de sistemas para os interceptar e abater, sistemas de artilharia CESAR, espingardas de sniper e equipamento adicional, sistemas antitanque, carros de combate AMX-10 RC, blindados Marder, munições para o sistema MARS, jipes, granadas de morteiro, armas antitanque Panzerfaust-3 e carros de combate PT-91- Twardy, mísseis antitanque NLAW, centenas de veículos blindados, incluindo os Stormer, equipados com lançadores de mísseis antiaéreos, mísseis antitanque Brimstone, e os Bulldog de transporte de pessoal, para citar apenas parte do material principal.

Estão ainda prometidos dezenas de carros de combate Leopard 2, oriundos da Alemanha (14), Polónia (14), Espanha (10), Canadá (4), Finlândia (3), Noruega (2), Polónia (2) e Portugal (2).

Um carro de combate alemão Leopard 2 das Forças Armadas do Canadá em exercícios em 2017 Foto - Reuters

A 14 de janeiro de 2023 o Reino Unido comprometeu-se a enviar 14 blindados Challenger II, assim como milhares de munições e veículos de recuperação e reparação, num pacote ainda mais vasto.

Dos EUA, de longe o maior doador, a lista curta inclui sistemas antiaéreos, sistemas táticos aéreos autónomos (UAS), sistemas anti UAS, radares, helicópteros, navios de defesa costeira, 20 HIMARS [desde julho 2022], sistemas avançados de mísseis terra-ar NASAMS, mísseis para o sistema de defesa aérea HAWK, sistemas Avenger de defesa aérea de curto alcance, veículos blindados, sistemas seguros de comunicações táticas, uma bateria de mísseis de defesa aérea Patriot [desde dezembro de 2022] e carros de combate Bradley. Estão prometidos carros de combate Abrams 1.

Um carro de combate soviético T.72 remodelado e transformado no PT-91 polaco Foto - Arquivo Reuters

Em contraste com o apoio militar norte-americano, a União Europeia tem facultado maior auxílio humanitário e financeiro à Ucrânia, de acordo com o Instituto Kiel para a Economia Mundial.

Até finais de 2022, países e instituições da UE contribuíram com 52 mil milhões de euros em assistência militar, financeira e humanitária, ultrapassando as garantias dadas pelos EUA, que somavam quase 48 mil milhões de euros, notou o Instituto no seu mais recente relatório sobre a guerra.

Portugal contribuiu desde o início com ajuda letal e não letal, revelando quantidades [160 toneladas numa segunda tranche] sem dar detalhes dos valores envolvidos. Comprometeu-se ainda a enviar dois dos seus carros de combate Leopard 2 e a auxiliar nas missões de treino, como recordou o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, dia 22 de fevereiro.
Um ano de perdas
Para além do apoio dado a Kiev pelos países ocidentais e aliados, alguns fatores são vitais para explicar o insucesso do Kremlin, quanto aos seus objetivos militares principais, no curto prazo da sua operação especial para desnazificar a Ucrânia, como a classificou.

O relatório Equilíbrio Militar, do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS) baseado em Londres aponta o facto das açóes do exército russo ao longo do ano transato levantarem questões não apenas quanto à competência das suas lideranças políticas e militares, mas também quanto à coesão do comando.

Em 12 meses as perdas materiais acumularam-se de ambos os lados. O exemplo dos carros de combate é paradigmático.

O relatório do IISS estimou em 50 por cento as perdas russas dos seus principais carros de combate, os modernos T-72B3s e T-72B3M. De acordo com as conclusões publicadas a 15 de fevereiro de 2023, em apenas um ano a Rússia perdeu quase 40 por cento na sua frota de blindados, incluindo modelos mais antigos e mais modernos do que o T-72, de  longe o mais comum nos arsenais russos.

A Federação Russa tem contudo reservas suficientes de carros de combate mais velhos para substituir tais baixas. "A produção industrial prossegue mas permanece lenta, forçando Moscovo a recorrer às suas armas mais velhas como substitutas de atrito", referia o presidente executivo do Instituto, John Chipman no lançamento do relatório Equilibrio Militar sobre as forças armadas do globo.

Os arsenais ucranianos sofreram igualmente alterações neste último ano e a sua frota de carros de combate, consideravelmente menor do que a russa, também sofreu baixas pesadas. Parte destas perdas foram anuladas pelos blindados da era soviética recebidos dos aliados, incluindo a Polónia.

O fluxo constante de armamento dos apoiantes ocidentais da Ucrânia tem sido crucial para sustentar e modernizar o inventário ucraniano. Modelos ocidentais de armas e de artilharia "significam que o exército [da Ucrânia] pode agora atacar a maior distância com projeteis de maior precisão", refletiu Chipman.


Apesar disso os ucranianos sentem que a vantagem percebida nos primeiros meses se esfumou e que, “infelizmente”, as tropas russas têm mudado o comportamento no campo de batalha. A Ucrânia procura por isso obter mais munições e maior vantagem a nível de equipamentos mais modernos e de maior alcance do que os russos, que lhe permitam resistir e eventualmente avançar.

Na linha da frente, os soldados apelavam no início de fevereiro de 2023 à entrega rápida de armamento para suster os assaltos russos.
Foi o recado deixado nas trincheiras aos repórteres da RTP, António Mateus e Sérgio Ramos, perante a crescente ofensiva russa apoiada em vagas infindáveis de soldados e somada à crescente falta de munições do lado da Ucrânia.
Carne para canhão
Uma das maiores disparidades entre a Rússia e a Ucrânia e que o Ocidente não consegue colmatar, está relacionada com os meios humanos disponíveis para o combate. Há mais quase 100 milhões de russos do que ucranianos. A mão-de-obra ao dispor de Moscovo para o esforço de guerra é três vezes superior à da Ucrânia, tal como os cidadãos aptos para o serviço militar. E o pessoal no ativo é quatro vezes superior na Rússia.


A contabilização de baixas de ambos os lados tem sido complicada e está baseada em estimativas, uma vez que nenhum dos lados revela as suas perdas.

Mesmo os números publicados podem obedecer a objetivos de propaganda e devem ser olhados com reservas, já que as fontes relativamente fidedignas dos números que circulam escasseiam.

Algo que auxilia a análise é o recurso aos meios humanos, lembrando a superioridade das forças russas em termos de quantidade.

Do lado ucraniano, a mobilização decretada desde 2014 contra as forças das autoproclamadas repúblicas de Donetsk e de Luhansk, foi reforçada imediatamente após 24 de fevereiro de 2022 e aplicada a homens dos 18 aos 60 anos e a mulheres especializadas em áreas como química, biologia e telecomunicações.

O Ministério da Defesa ucraniano anunciou logo então o recrutamento de até um milhão de reservistas, número que pode já ter sido ultrapassado.

Uma parte de um vasto cemitério de vítimas ucranianas do conflito em Khakiv, a 31 de janeiro de 2023 Foto - Reuters

O Kremlin garantia por seu lado que não iria recorrer a qualquer mobilização.

Mas já a 19 de fevereiro de 2022, ainda antes do início da invasão, milhares de residentes das duas repúblicas autoproclamadas haviam sido mobilizados. Estimativas calculam que até meados de junho já tivessem sido recrutadas 140 mil pessoas, apesar de muitas terem tentado fugir ou esconder-se.

A mobilização forçou o encerramento de minas e de fábricas e paralisou cidades inteiras nas duas regiões do leste ucraniano. Pelo menos 30 mil destes combatentes poderão ter perecido até agosto de 2022, em confrontos com o exército treinado ucraniano, mesmo se os números oficiais são muito inferiores.

Citando fontes próximas do Kremlin, o projeto independente iStories afirmava a 12 de outubro que teriam morrido já 90.000 soldados russos. De então para cá poderão ter perecido outros tantos.

A resistência ucraniana, alimentada pela ajuda ocidental, forçou entretanto o Kremlin a dar o dito por não dito, a rever consistentemente os seus planos e a empenhar cada vez mais meios humanos e equipamentos nas suas operações.

A quantidade de pessoal à sua disposição é uma das maiores vantagens. Alguns analistas ocidentais calculam as perdas do Kremlin em até 100 mil homens só nos primeiros oito meses de guerra, mas mais têm sido enviados para a Ucrânia, numa aparente vaga sem fim.

Logo em junho e julho de 2022, num sinal de que a operação especial não lhe corria de feição, o Kremlin começou a retirar pessoal dos cenários de guerra da Síria e da Ossétia do Sul e a formar unidades de "voluntários" numa mobilização não declarada. Também nesse mês o grupo paramilitar Wagner iniciou o recrutamento nas prisões russas e em África, para repovoar os seus contingentes.

Só com base nas baixas identificadas, em setembro de 2022 teriam já perecido 6.476 soldados russos, de acordo com a BBC Rússia. Um número extremamente conservador, 40 a 60 por cento abaixo do real, de acordo com diversos observadores, e sem contar com os desaparecidos em combate e com os corpos deixados em solo ucraniano.

Seja qual for a realidade das perdas, o Kremlin recuou nas garantias de que ninguém seria mobilizado para a Ucrânia e lançou em nove de setembro de 2022 uma mobilização parcial, calculada em 300 mil reservistas embora os números sejam classificados.
Na mesma ocasião, o Presidente da Federação Russa, Vladimir Putin, ameaçou recorrer às armas nucleares para fazer valer os seus objetivos na Ucrânia, um alerta que vozes leais ao Kremlin mencionaram amiúde nos últimos seis meses.

Até fevereiro de 2023 terão sido mobilizados mais 200 mil russos, de acordo com fontes ucranianas da Defesa.


De notar que a própria BBC Rússia frisou no início de fevereiro de 2023 que "todas as semanas sabemos de funerais de soldados, não reportados, em toda a Rússia", concluindo que o seu número estimado de baixas seria extremamente conservador. Dos contabilizados, quase 13 por cento eram oficiais, 14,6 por cento fuzileiros motorizados e 11.4 por cento pessoal da Força Aérea, acrescentou.

Outro sinal de que nem tudo está a correr bem do lado russo ao fim de um ano de guerra, são as queixas quanto à "burocracia de Moscovo" por parte do autoproclamado líder do Grupo Wagner, um dos pilares da ofensiva de Moscovo na Ucrânia. Yevgeny Prigozhin, de 61 anos, costuma recrutar nas prisões russas os membros do seu grupo de mercenários, mas a estratégia terá começado a ser bloqueada, o que lhe motivou ressentimentos. A 15 de fevereiro lamentou-se que o recrutamento prisional estava a correr bem e que agora o número de unidades Wagner na Ucrânia ia inevitavelmente diminuir, com prejuízo dos objetivos militares.

Campas de soldados do grupo Wagner em Bakinskaya, região de Krasnodar, Russia Foto - Reuters

A Casa Branca afirmou sexta-feira 17 de fevereiro 2023 que o grupo de mercenários tinha perdido no último ano mais de 30.000 membros. Estimou ainda que 90 por cento dos mortos do Grupo Wagner desde dezembro fossem ex-condenados, referiu o porta-voz da Casa Branca para o Conselho de Segurança Nacional, John Kirby.

O Presidente russo, Vladimir Putin, terá pedido há um mês a Prigozhin para moderar as suas críticas. O Kremlin negou contudo notícias de que deu aos meios de comunicação social ordens para deixar de referir o nome de Prigozhin ou o Grupo Wagner.

Após a mobilização de setembro, multiplicaram-se nas plataformas ocidentais vídeos de contingentes russos a queixar-se de pouco ou nenhum apoio militar ou médico, do comando na frente de batalha, incluindo insultos a oficiais, de serem deixados sozinhos, isolados, e armados com equipamento obsoleto. Os detratores apontem a possibilidade dos vídeos terem sido forjados com objetivos de propaganda antirussa.

Moscovo ameaçou os desertores ou quem se renda com até 10 anos de prisão e tem continuado a enviar soldados contra as posições ucranianas.

Gustav Gressel, um analista político ligado ao gabinete alemão do Conselho Europeu para as Relações Externas, comentou o recrutamento russo de setembro, considerando que "o principal objetivo disto será tentar esgotar as munições ucranianas antes de a Rússia ficar sem soldados". Uma análise que se mantém atual.
As vantagens do conflito

Os investimentos do Ocidente na Ucrânia não irão cair em saco roto.

A guerra na Ucrânia está, de certo modo, a servir de teste a muito do armamento ocidental desenvolvido nas últimas décadas, com os Estados Unidos à cabeça. E também contribui para desarmar a Federação Russa.

"Enquanto a Ucrânia tem recebido apoio militar e económico crucial, o mundo ocidental está a beneficiar de segurança acrescida, assim como a adquirir informação importante e experiência única no campo de batalha", fez notar, no passado dia 12 de janeiro de 2023, o analista Taras Kuzio, professor de Ciência Política na Universidade de Kiev, num artigo de análise para o Atlantic Council.

Kuzio sublinhou que a guerra tem estado a consumir o arsenal russo e em consequência o seu potencial militar, "sem as tropas ocidentais sofrerem baixas". "Isto reduz dramaticamente a ameaça colocada ao flanco leste da NATO. Deverá ajudar o mundo ocidental a focar inteiramente a sua atenção na China", referiu.

"A derrota na Ucrânia iria relegar a Rússia da lista dos superpoderes militares mundiais e deixar Moscovo com anos de recuperação até poder de novo ser uma ameaça para além da sua região", refletiu ainda o analista, sem mencionar a ameaça nuclear.

Os ocidentais têm adquirido ainda informações sobre as armas russas e as capacidades ofensivas e de logística da Federação Russa. Já a criatividade ucraniana em combate tem multiplicado possibilidades no uso do armamento recebido, acrescenta Kuzio, referindo a capacidade "à McGyver" revelada pelos ucranianos "para se adaptar e implementar armas NATO usando plataformas da era soviética".
Nesta reportagem numa escola de manipulação de drones dos enviados da RTP à Ucrânia, António Mateus e Cláudio Calhau, verifica-se a capacidade de adaptação dos ucranianos a novas tecnologias de armamento.

O uso inovador de tecnologias digitais pelos militares ucranianos, como o uso do sistema de satélites Starlink providenciado por Elon Musk, ou de drones, como o modelo turco Bayraktar, de forma a conseguir vantagem na frente de batalha, fornece ainda experiências valiosas para os comandos militares globais. E a empresa turca que fornece os drones já tem nos seus planos a construção de uma fábrica na Ucrânia.

Também no caso dos Lançadores Múltiplos de Morteiros M142, HIMARS, os níveis de manutenção alcançados no terreno têm sido fonte de aprendizagem para os seus criadores, enquanto as pequenas equipas de soldados ucranianos, armados com lançadores portáteis de mísseis Stinger e Javelin, usadas para emboscarem blindados russos sem infantaria nos flancos, vieram comprovar a mobilidade rápida exigida nos atuais campos de combate.

Soldado ucraniano acciona um lançador RPG-7 de granadas antitanque durante exercícios na região de Zaporizhzhia, Ucrânia, a 23 de janeiro, 2023 Foto - Reuters

Em contraste, o canhão M777 Howitzer, bastante utilizado pelos ucranianos de início, terá ficado obsoleta nos cenários desta guerra, por ser difícil de mover para evitar fogo de retaliação num mundo dominado por drones e por vigilância aérea. Os canos dos Howitzer sofrem além disso com os disparos repetidos, perdendo eficácia.

Os cofres dos produtores de armamento também estão a beneficiar com o conflito. Basta olhar para os lucros obtidos por empresas como a Lockheed Martin e a Raytheon, duas das maiores produtoras de armamento do mundo, ou a Northrop Grumman.

A Administração Biden tem recorrido à autoridade presidencial especial para poder enviar rapidamente para a Ucrânia armas das reservas norte-americanas, usando depois fundos autorizados pelo Congresso para as repor.

Em maio de 2022, Joe Biden dirigia-se aos empregados da Lockheed Martin no Alabama, e reconhecia o estratagema.

"Vocês estão a possibilitar aos ucranianos defender-se sem que nós tenhamos de lutar numa terceira guerra mundial ao enviar soldados norte-americanos a lutar contra soldados russos", afirmou. "E cada trabalhador aqui e cada contribuinte norte-americano está a ajudar diretamente a causa da liberdade", justificou o Presidente dos EUA.

A Lockheed Martin tem sido uma das empresas mais beneficiada pela guerra. Produz os sistemas de alta-tecnologia que defendem as cidades ucranianas dos bombardeamentos aéreos russos e os Sistemas de Morteiros de Alta Mobilidade conhecidos como HIMARS, fulcrais para os ganhos da Ucrânia no verão transato. Segundo a Defense News, os EUA deram a Kiev 20 destes últimos e encomendaram outros 18, orçados em cerca de 1,1 mil milhões de dólares (mil milhões de euros). As ações da companhia subiram 38 por cento em 2022, após a invasão russa.

Devido à procura, a empresa decidiu aumentar a sua produção anual dos mísseis Javelin de 2.100 para 4.000. Além disso, o exército norte-americano atribuiu à Lockheed Martin contratos orçados em 521 milhões de dólares (487 milhões de euros), para reabastecer os próprios arsenais.

A Raytheon conseguiu por seu lado um contrato de 1,2 mil milhões de dólares (1,1 mil milhões de euros) por seis sistemas de mísseis terra-ar. A empresa coproduz mísseis Javelin e mísseis Stinger, que lhe valeram encomendas no valor de 624 milhões de dólares (583 milhões de euros) em maio de 2022, de acordo com o Financial Times – as primeiras em duas décadas.

Também as encomendas mundiais pelos sistemas de defesa aumentaram, especialmente as oriundas dos países do leste europeu, fez notar o presidente executivo da Raytheon, Greg Hayes. Nos primeiros 10 meses de guerra, a Ucrânia consumiu tantos mísseis antiaéreos Stinger como a Raytheon produz em 13 anos, sublinhou a revista Breaking Defense.

Já a Northrop Grumman, um dos líderes mundiais na produção de munições, espera crescer substancialmente no médio prazo devido à procura, reconheceu a sua presidente executiva, Kathy Warden.

Várias empresas de armamento dos EUA têm procurado ganhar ainda o campeonato da reputação na defesa da liberdade ao sublinhar o seu apoio à Ucrânia, depois de críticas severas ao facto de fornecerem a Arábia Saudita com armamento usado no Iémen contra a população civil.

"Uma coisa é ajudar a Ucrânia a defender-se, algo que é certamente legítimo", referiu Bill Hartung, do Instituto Quincy de Responsabilidade Estatal. "Mas penso que as empresas querem ir além disso. Querem ganhar reputação com isto".
Apoio dos EUA tem décadas
A Ucrânia tem recebido assistência dos EUA desde a independência em 1991. Na primeira década recebeu quase 2.6 mil milhões de dólares (cerca de 24 mil milhões de euros) em ajudas.

Até 2014, Kiev beneficiou ainda de uns estimados 105 milhões de dólares (98 milhões de euros) anuais, incluindo financiamento militar.

Depois desse ano e da anexação da Crimeia pela Rússia, até outubro de 2021, os serviços do Congresso dos EUA estimam que o país tenha fornecido à Ucrânia mais de 2.5 mil milhões de dólares (2.3 mil milhões de dólares) em assistência securitária em geral, incluindo pacotes de apoio anunciados nos primeiros seis meses da Administração Biden, também de armas letais, "para possibilitar a autodefesa da Ucrânia contra a agressão russa". Em dezembro de 2021, os Estados Unidos anunciaram o envio de ainda mais ajuda à Ucrânia na área da Defesa. Um acréscimo de 200 milhões de dólares (186 milhões de euros) recebeu luz verde da Administração.

A 26 de janeiro de 2022, menos de um mês antes da invasão russa, o Departamento de Estado dos EUA confirmou o envio adicional de mísseis Javelin, de sistemas anti blindados, de munições e de equipamento não letal. O apoio incluía ainda cinco helicópteros Mi-17 e a autorização a outros países para encaminharem para a Ucrânia armamento de fabrico norte-americano presente nos seus arsenais.

Um mês depois, a 26 de fevereiro de 2022, o Presidente Joe Biden reforçou a assistência à Ucrânia em mais 350 milhões de dólares (327 milhões de euros), oriunda dos inventários norte-americanos, incluindo armas pessoais e várias munições, e elevando para mil milhões de dólares (934 mil milhões de euros) o total da ajuda desde o início da Administração Biden no início de 2021.

A tendência prosseguiu em alta até janeiro de 2023, quando foi anunciado um pacote de 3.750 milhões de dólares (3.500 milhões de euros), o maior de sempre.


No dia 31 de janeiro, o Presidente Biden anunciou o envio de 31 blindados M1 Abrams, sem revelar quando. Calcula-se que a promessa leve meses a concretizar, devido ao treino operacional e à complicada cadeia de abastecimento e de  manutenção requeridos. O anúncio terá sido contudo vital para a Alemanha desbloquear a cedência dos seus Leopard 2.

No dia três de fevereiro, o Departamento da Defesa dos EUA confirmou o envio de bombas teleguiadas de alta precisão GLSDB e unidades HAWK de defesa aérea, assim como munições e outro armamento, a serem entregues até finais de março ou princípios de abril.

O treino de tropas ucranianas nas operações do sistema Patriot iniciou-se em janeiro de 2023, tal como treino em manobras conjuntas a nível de brigadas e batalhões.

Também em janeiro de 2023 os Estados Unidos anunciaram um financiamento externo orçado em 682 milhões de dólares (637 milhões de euros) para auxiliar os aliados a fornecer armamento americano à Ucrânia, incluindo 12.000 sistemas anti blindados, mais de 1.550 mísseis antiaéreos, aparelhos radar e de visão noturna, armaduras pessoais, metralhadoras, espingardas e munições.

O Departamento da Defesa confirmou ainda o financiamento da reforma de 45 carros de combate T-72 checos, que decorre em conjunto com a Chéquia e com os Países Baixos.

A próxima fase do contributo, já em discussão, poderá abranger a ajuda aérea pedida há longos meses por Kiev, sobretudo se a Rússia decidir recorrer aos seus caças para tentar decidir rapidamente o conflito.